31/07/2018

Memórias gastronômicas - Parte II


Prezados,

Tive que dividir a postagem em duas partes pois, as memórias gastronômicas para mim e  qualquer pessoa, têm pelo menos dupla importância: sensitiva e cultural.
Sensitiva, por permitir sentir a vida por todos os sentidos do corpo humano e, cultural por proporcionar a compreensão da construção histórica de hábitos e atitudes influenciados pela influência de grupos de pessoas das diversas regiões do pais e do mundo.
Continuando com a parte II da postagem, não poderia me esquecer dos locais e dos sabores que descrevo abaixo.

-Salada Paulista: conheci em 1957, pouco antes de mudar-me para São Paulo. Foi um marco inesquecível da cidade, localizado no centro, Av. Ipiranga entre São João e 24 de maio, quando o centro de São Paulo era realmente o centro: toda a atividade era lá. Para remeter uma carta ou um telegrama, eu tomava o bonde ou o ônibus para ir até o correio central, na São João com Anhangabaú. 

Ao lado do restaurante, a banca de jornais da Ipiranga com São João era a única em São Paulo que vendia jornal do Rio Grande do Sul, então virou um ponto de encontro de gaúchos para, entre um e outro “baaah, tchê”, matar saudades da terra. Na “Salada” não tinha mesas, era um longo balcão com banquetas, servia lanches, sanduiches e pratos rápidos; tudo muito fresco, saboroso e barato. O prato que simbolizava a casa era a salada de batatas com salsicha, e um dos mais pedidos era o sanduiche de bife a milanesa. Lamento que tenha fechado, devido à dinâmica da cidade com seu crescimento, modernização e, acredito americanismos que tiraram o espaço do “cachorro quente” para substituir pelo “hot dog”.

-Cachorro quente: a citação acima fez aflorar em minha memória o cardápio em nossa casa, infância em Rio Grande, nos sábados à noite. Por muitos e muitos anos minha mãe preparava neste dia o cachorro quente, em sua versão absolutamente original: pão francês (“cacetinho” no idioma gauchês), salsichas, molho de tomate, cebola e salsa, mostarda e pimenta. Uma delícia, até hoje desprezo qualquer “cachorrão” com um monte de componentes se houver esta lembrança de mamãe em troca. Um caso “puxa” outro; em 1973, pouco mais de 2 anos de casados, Olga e eu fomos de carro a Buenos Aires, onde tinha sido parte de nossa lua de mel. Fizemos excelentes compras de jogos de louças, copos, taças, peças de cristal e talheres; o carro, Corcel, veio lotado. Saímos cedo de Buenos Aires, atravessamos a balsa em Colônia, e tivemos um atraso em Montevidéu para esperar o comércio abrir (fecha para almoço) para trocar uma mercadoria comprada na ida; seguimos viagem em direção a Chuy, sem almoçar. Fomos parados por uma fiscalização fazendária, devido à quantidade de mercadorias; houve ameaça de apreensão. Conseguimos convencer o agente que não tínhamos nenhuma intenção de vender, e ele liberou, mas nos deu um prazo, o estritamente necessário para chegar a Chuy onde deveríamos apresentar o passe que ele nos forneceu e sair do país. Resultado: entramos no Brasil – Chui – às 19hs., tendo como alimentação única no dia apenas o café da manhã em Buenos Aires. Nossa salvação foi um trailer vendendo “cachorrão”, novidade à época e que conhecemos lá. Claro que foi o lanche mais saboroso de nossas vidas! Inesquecível!

-Dinho´s Place: tradicional churrascaria, aberta na década 1950 por um “patrício” – Fuad Zogaib – e daí saiu o nome da casa, derivado do diminutivo afetivo do nome – Fuadinho. Até hoje, idade avançada, ele comparece na casa, que se firmou na cidade pelo excelente padrão – instalações, atendimento, qualidade dos produtos; frequento-a devido a   todo este conjunto.
Lá tenho preferência pelos churrascos, pela ótima feijoada às quartas e sábados, e pelo buffet de peixes e frutos do mar às sextas; mas de tudo, em especial acho imbatível o frango desossado grelhado. Sempre senti muita falta, aqui em São Paulo, do galeto do Rio Grande do Sul; nunca achei nenhum que pudesse lembrar o que comemos lá, em qualquer lugar, mas principalmente na região da Serra Gaúcha – Bento Gonçalves, Caxias, etc... E o Dinho´s consegue fazer-me sentir o sabor do “meu” Rio Grande. E ele está marcado também pelos nossos jantares de turma da faculdade, a gloriosa turma da Poli 65, que se reúne anualmente graças ao fenomenal empenho, dedicação e organização do Bernasconi (além dos puxões de orelha às vezes  nos “sumidos” que ficam tempo sem aparecer);  por vários anos tivemos lá uma sala reservada para este evento, no qual os circunspectos engenheiros, que alguns minutos antes estavam em seus escritórios ou reuniões tomando decisões importantíssimas, transformam-se em garotos estudantes. Faz-me lembrar também uma figura especial, muito querida, o Sr. Jamil Chammas. Patrício dos mais tradicionais, pai da Beth e sogro do Simão (o Zé Carlos), lá fazia seus almoços de domingo reunindo a família. Ficou famoso o “ritual” da escolha do prato: cada vez folhava e consultava detidamente o vasto cardápio, com grandes dúvidas sobre o que escolher. Vinha então a decisão: um filé com fritas; SEMPRE!!! Uma explicação sobre o porque de citar acima nome do Zé Carlos: tenho vários grandes amigos com o mesmo nome – Simão, então achei que deveria esclarecer qual era; tenho até um grande amigo, em Rio Grande, que é   plural: meu prezado SIMÕES.

-Memórias: existem diversos pratos  dos quais eu lembro onde e em que circunstâncias   provei pela primeira vez, e vou relatar quatro casos. Não tenho certeza, creio que foi com 8 a 10 anos de idade; em Rio Grande tínhamos o hábito de abrir a refeição com um prato de sopa, então nesta época surgiu   para provarmos um vidro de molho denso, cor vermelho forte, um pouco adocicado, para misturar na sopa, e com um nome esquisito: ketchup, hoje difundido para temperar sanduiches. Conheci o   creme de milho no fim dos anos 50; o Nicolau Safatle, grande amigo, médico, casou-se em Botucatu com a Magali, de uma família muito conceituada, filha do Dr. Brasil Blasi. Fomos em um grupo grande ao casamento. Pouco tempo depois, o casal morando na Av. Angélica, em São Paulo, ofereceu-nos um almoço. Lá, entre outros quitutes, conheci o creme de milho, que além de não conhecer também nunca ouvira falar; apreciei muito o sabor. Depois deste almoço comi muitas vezes. A Olga gosta muito, seguidamente pedimos comida do Juca Alemão em boa parte devido ao creme de milho que eles preparam. Atualmente já não aprecio tanto porque meu gosto   por alimentos adocicados diminuiu, acho-os enjoativos. Mais uma experiência com novidades culinárias eu já citei em outra crônica; foram as aulas do Jorge Yamashita sobre o Japão. No bairro da Liberdade, centro das colônias japonesa, chinesa e coreana, comi pela primeira vez comida japonesa, em 1975, como treino para viajar para lá. Pode parecer estranho, devido à grande penetração hoje no gosto da população em todo o Brasil, mas naquela época ninguém que não fosse da colônia conhecia.  Outro caso, mais recente, por volta de 1992/1993, eu era Diretor de uma estatal com escritório no Brooklin, próximo do Clube Hípica. Um dos diretores, o Parreirinha, era sócio do Clube e seguidamente íamos almoçar lá, todos os diretores. Nos restaurantes não era conhecido o creme de papaia, mas no do clube já era servido; gostei muito!  E quando passou a ser servido nos restaurantes, também caiu no gosto da Olga, que pedia seguidamente.

-Bauru: já é muito conhecida de a história da invenção do bauru e a razão do nome. Não é preciso repeti-las aqui. Meu irmão Camil, que como todos nós da família era um grande apreciador de bons sanduiches, conheceu-o aqui onde ele “nasceu”, São Paulo, e levou a novidade para Rio Grande. Minha mãe adotou-o e incluiu na rotina dos lanches de casa; logo fez sucesso entre os amigos, que vinham para saborear a novidade “importada” de São Paulo. Era a década de 1950. Após algum tempo as lanchonetes começaram a preparar, e teve grande expansão na cidade. Algumas tornaram-se famosas, e passou a ser o lanche preferido da turma da madrugada e do fim de noite. O “bauru do abrigo” – abrigo era o nome de uma estação de bondes em Rio Grande – passou a ser programa obrigatório nas madrugadas. Surgiu, então, um novo capítulo desta história: um dos hábitos do sulista é o de aprimorar seus quitutes mais apreciados, como fez por exemplo com o cachorro quente – criou o “cachorrão”, praticamente uma refeição, antes que São Paulo o adotasse. 

E fez o mesmo com o bauru: criou o “bauru no prato”. Uma receita riquíssima que consegue alimentar várias pessoas. O mais famoso era feito em Caxias do Sul. Uma vez, 1965, vindo de São Paulo de carro, Farid, Zé Roberto “Abacate” e eu, em um fusca recém comprado pelo Farid, programamos a viagem para dormir em Caxias, com a intenção (e   o estômago) mirando o “bauru no prato”. Não lembro bem o nome do local, muito famoso à época, talvez “Recreio dos Estudantes” ou “Recreio da Juventude”? Atualmente constitui uma variante da receita original; o velho bauru tradicional (rosbife, pepino, tomate, orégano, pão, manteiga e queijos) foi incrementado   e é conhecido como “bauru gaúcho” (opções de bife, linguiça, frango ou coração; presunto, queijos, tomate, cebola, alho, ketchup, orégano, servido no prato).

-A bordo: existem dois locais onde, quando se fala em comer, surge de imediato uma expressão de desprezo, comida pouca e ruim: hospital e avião. Avião, hoje, nem isso, é sinônimo de quase “passar fome”. Mas houve época em que esta viagem era um acontecimento, coberto de charme e elegância; e a nossa Varig – (Viação Aérea Riograndense, maldosamente apelidada de “Vários Alemães Reunidos Iludindo Gaúchos”) contribuiu muito para isto. Seu padrão de serviços estava entre os melhores do mundo. 


Chegava ao requinte de buscar cada passageiro em casa para levar ao aeroporto, de limousine; mas eram menos de 30 passageiros, a capacidade de um DC-3. E as refeições de bordo eram banquetes, mesmo! Em qualidade, quantidade, variedade e atendimento. Certa vez minha filha Cibele, criança, comeu um quindim a bordo, e passou VÁRIOS ANOS nos pedindo para voltar àquele avião para comer O quindim. Seria o doce mais caro do mundo! Mas a Varig foi responsável também, usando sua grande força política, por atrasar em muitos anos o ingresso  da aviação brasileira no “lowcost” e nos voos fretados (charter), que a Monark Turismo popularizou alguns anos depois.

Sendo extremamente elitista em seus conceitos, defendia as tarifas elevadas como eram; foi, na aviação, o que é o Laboratório de Análises Clínicas Fleury em São Paulo na medicina, de alta qualidade, caro e elitista. Aliás, com os preços e demais condição dos bilhetes aéreos praticados hoje seria absolutamente impensável manter um padrão de qualidade como aquele. No entanto, superando Varig e qualquer outra empresa em que voei, o maior banquete a bordo foi em um voo Avianca para os Estados Unidos via Colômbia onde fomos visitar parentes. A qualidade da empresa deixou muito a desejar, mas o almoço... Nunca imaginei algo tão fantástico a bordo de um avião. O  menu era criação do maior nome mundial da gastronomia à época, Paul Bocuse. Banquete de verdade!

-Churrasco: esta é uma lembrança que, acredito, não seja apenas minha, mas coletiva. Um bom churrasco está no gosto de quase toda a humanidade. E, óbvio, tratando deste tema é impossível esquecer nossos “hermanos” uruguaios e argentinos e, no Brasil, o Rio Grande do Sul. A excelência vem de uma composição de fatores, entre os quais estão as raças nobres de gado que se desenvolveram na região; a topografia com grandes campos e sem aclives pronunciados, que permitiu criação adequada; o preparo, que soma ritual, tradição e experiência. O caráter festivo e de comunhão entre as pessoas em qualquer “churrascada”. E esta qualidade é encontrada sempre, nas reuniões entre familiares e amigos, nos restaurantes, todos, desde o sofisticado até o humilde “boteco”.

-Darci: São Paulo é um dos maiores centros gastronômicos do mundo; é muito usada a expressão “restaurante é a praia do paulistano”. Um estudo da ONU feito há alguns anos colocou-a entre as quatro melhores, junto com Paris, Nova Iorque e Tókyo. No item “churrasco” tem casas excelentes, e quero registrar uma que considero marcante: a “Costela de Ouro”, aberta na década 1960 no Planalto Paulista (está lá até hoje) pelo Darci. Gaúcho de Pelotas, ex  funcionário da Varig, excelente assador, era requisitado pelo poderoso Rubem Berta para preparar quando tinha vontade ou recebia alguma visita importante (e tinha muitas). Ao aposentar-se, abriu a casa num andar superior  na Av. Piassanguaba (no térreo tinha uma padaria) e de imediato “bombou” no gosto paulistano; estou entre os primeiros clientes. A casa sobressai tanto pela qualidade do churrasco como pela autenticidade com relação ao afamado churrasco gaúcho. 

-O trivial: não poderia ficar fora a marca daquelas refeições triviais, extremamente saborosas. A cozinha brasileira é rica em sabores, e além dos milhões de   donas de casa que preparam as refeições para suas famílias temos também um tipo marcante: a comida de pensão. Quase todos os que saíram de casa para estudar ou trabalhar em outra cidade passaram por esta experiência. O trivial paulista, por exemplo, nos oferece um desfile de sabores que incluem, entre outros, saladas diversas (principalmente verde e maionese), macarrão, bife, frango, bisteca suína, ovo frito, arroz, feijão, legumes diversos cozidos... Eu, mesmo casado, fui várias vezes com a Olga e também com nossas filhas almoçar em alguma destas pensões. Nas nossas frequentes idas a Águas de Lindóia ou Serra Negra seguidamente fomos  almoçar no Sagrado Coração, ou em idas a Santos almoçar na Pensão Paulista (hoje Hotel). Citei apenas o trivial paulista, no Brasil existem muitos outros como o baiano e o mineiro. Devo citar também a nossa feijoada, para mim um dos pratos mais saborosos do mundo! Não importa a polêmica quanto à sua origem – escravos, cozido português – qualquer feijoada é imbatível em sabor.

-Maria Fulô: mais um dos muitos lugares em São Paulo onde fui levado a conhecer pelo Adib Salomão; creio que devo falar um pouco dele. De Rio Grande, sétimo e último filho de João Salomão, amigo de meu pai desde a juventude no Líbano; idade 9 anos além da minha; nossas famílias tiveram sempre uma convivência muito grande; formou-se em Direito em Porto Alegre, ainda jovem foi um dos fundadores de Faculdades em Rio Grande, ocupou cargos no governo estadual, onde chegou a Secretário da Educação; começando a namorar a Juçara Mansur (não é erro de grafia; é com “ç” mesmo), deslocou seu foco para São Paulo; com a namorada, depois noiva e esposa, o casal praticamente “adotou-me” para a vida mundana numa fase em que eu não tinha nenhuma condição financeira nem conhecimentos para tal. Voltemos ao Maria Fulô! Restaurante aberto em São Paulo, no Alto da Boa Vista, zona sul e região residencial nobre, por uma conterrânea, da cidade de Rio Grande, Vanda, grande banqueteira. Dedicou-se à cozinha baiana, e o restaurante era o que poderia ser classificado como PERFEITO. Instalações extremamente luxuosas e de bom gosto, excelente serviço   em atenção e eficiência, servia refeição completa composta por um desfile dos principais pratos da culinária baiana com apresentação e preparo impecáveis, desde a entrada e os aperitivos até o encerramento. A crítica à época chegou a considera-lo um dos dez melhores restaurantes do mundo. Foi um de meus locais preferidos para, além de frequentar, levar convidados. O Farid Nader lembra até hoje de um pequeno detalhe do serviço: estacionamento com manobrista de carro à porta, hoje comum, não fazia parte ainda dos hábitos usuais; era a década 1960, e para a época era um requinte no serviço.  Lamento que São Paulo tenha perdido este “monumento”: fechou depois que a Vanda, sem ambições econômicas ou empresariais, associou-se a um grupo com perfil oposto ao dela, e que, depois de abrir filiais, a busca pelo lucro levou à perda da qualidade original.

-O peixe: vou relatar uma experiência ímpar, difícil sob vários aspectos. Japão, 1975, eu lá a serviço da Companhia do Metrô, fui convidado a passar um fim de semana na colônia de férias dos engenheiros do Metrô de Tokyo, na cidade de Nikko. Antes de contar a história, vou falar sobre o local. Tudo o que vocês já ouviram dizer sobre as belezas do Japão é encontrado em Nikko de forma potencializada.Llá TUDO é magnífico. Centro de forte atração turística, situada a cerca de 2 horas de Tokyo, é a soma de uma natureza exuberante com obras de imenso valor artístico e arquitetônico. É a cidade dos templos, parques, jardins, lagos, cascatas, além de sediar diversas festas de larga tradição com   seculares trajes típicos. Bem, este é o local onde passei um fim de semana com os colegas engenheiros metroviários.


Nosso programa começou com uma visita à região e com as explicações dos significados das atrações. Não sou do estilo de guardar os nomes de tudo – e no Japão tem muito – nem de tomar anotações; apenas memorizo os nomes mais conhecidos ou dos lugares marcantes. De lá lembro do Lago Chuzenki, da belíssima cascata Kegon Falls, e do Templo Toshogu, famoso Patrimônio da Humanidade da ONU e onde estão os famosos 3 macaquinhos esculpidos em madeira na fachada (“não ouço, não falo, não vejo”). Quando, 16 anos depois (1991) voltamos lá com nossas  filhas Cibele e Nani (15 e 11 anos), fiz uma pequena brincadeira: algum tempo antes elas haviam montado um “puzzle” deste templo, e sem avisá-las que era o mesmo ficamos parados na frente, olhando até reconhecerem que era “o do quebra-cabeça”; então deram, juntas, um grito de alegria e emoção. Na sequencia de minha visita, fomos à colônia de férias, onde tomamos banho de piscina de água quente sulfurosa originária das muitas fontes de águas quentes da região. Na entrada havia um aquário, do qual um dos colegas escolheu qual peixe seria preparado para nosso jantar. Aí chegou a parte difícil: na mesa do jantar estava o peixe escolhido, fatiado da metade até o fim, e a parte da frente voltada para mim (soube depois que era em minha homenagem, como visitante), com ele respirando e me olhando. E o pessoal todo servindo-se das partes fatiadas. Não consegui comer! E, para não cometer a descortesia de uma recusa, fiz algo fora de meus padrões éticos; tenho grande rejeição pela mentira, mas ali eu a utilizei, dizendo que tinha alergia a peixe. Outra dificuldade: mentir no Japão, para japoneses, povo que não mente jamais. Mais: anotei os nomes e as feições de todos os presentes, e nos próximos dois meses que fiquei lá, em cada almoço juntos eu recusava comer peixe cada vez que tinha a presença de algum daqueles presentes neste jantar. Minha refeição nesta noite foi 100% vegetariana: os legumes assados de acompanhamento.

-Pão com queijo: na França é um de meus lanches prediletos. Simples assim, mas a qualidade dos queijos é imbatível, e melhor ainda com um vinho “nacional”; e a variedade! De Gaulle quando Presidente dizia que é impossível governar um país onde são fabricados 365 tipos distintos de queijo. Mas tive uma experiência curiosa. Saindo de Nice, de carro, onde tomamos um café da manhã completíssimo no hotel, iniciamos a subida pelos Alpes. Na hora do almoço, sem muita fome e para não tomar muito tempo, decidimos pelo pão com queijo. 

Passando pela pequena Bréil (menos de 1.000 habitantes), nas belíssimas paisagens dos Alpes Franceses, escolhemos: é aqui! Paramos numa padaria, pedi o pão e em seguida o queijo. A atendente olhou-me como se eu fosse um ET ou um maluco, como se estivesse querendo comprar pneus de carro numa farmácia ou coisa parecida. Com a expressão assustadíssima, disse: “du fromagge, ici? Seulement au supermarché la bas.” (queijo, aqui? Só no supermercado lá em baixo). Lembrei-me na hora de nossas maravilhosas padarias paulistanas, onde tem TUDO, até lanches, almoço, happy hour com os amigos, compras para casa, etc... Pensei em convidar a francesinha para conhecer uma destas padarias.
Certamente eu teria mais histórias de gastronomia a relatar, mas creio que tenha conseguido transmitir alguns casos marcantes.
Encaminhe seus comentários.


06/07/2018

Memórias Gastronômicas - Parte I



Prezados...

É absolutamente inevitável!  Sendo eu uma composição étnico-cultural formada dos libaneses dos quais sou filho, e de gaúcho, do Rio Grande onde nasci e vivi até meus 15 anos, a participação da gastronomia em minha vida ocupa lugar importante.

Não como autor, mas como consumidor. Como autor, mal sei preparar alguns quitutes básicos (um bom contra filé a cavalo, salada de batata com salsichas e alguns sanduiches incrementados) remanescentes do período de estudante, solteiro, morando sozinho na Vila Mariana em São Paulo. Mais ou menos, sei assar um churrasco estilo gaúcho, carne e sal grosso, apenas o suficiente para sobreviver. Como consumidor, guardo na memória alguns momentos que quero compartilhar com vocês. Começo com uma pequena referência ao que foi dito acima: da influência de ser gaúcho-libanês na alimentação.

A culinária no Rio Grande do Sul recebeu múltiplas influências, começando pelo estilo de vida do campo e depois com os imigrantes trazendo seus pratos. Daí surgiu uma grande variedade, como, por exemplo: churrasco, galeto, arroz de carreteiro, charque, pratos alemães, portugueses, italianos, peixes e frutos do mar. E a vinicultura gaúcha, hoje aperfeiçoada com um  incremento na qualidade da produção.


Além da grande fartura, contribuiu para a fama da cozinha do Sul a excelente qualidade dos produtos obtidos com agricultura orgânica. Em Rio Grande, minha cidade natal, os produtores vendiam nas feiras livres, ou então era muito comum comprarmos diretamente em suas chácaras. Por exemplo, o sabor de um tomate gaúcho, de qualquer fruta, legume ou verdura, produzidos nestas condições, é imbatível.

A culinária libanesa é um acontecimento! É formada por uma mescla de fatores em que o fantástico sabor talvez seja o menos importante. Antes dele virão o significado quase religioso de uma comunhão de pessoas ao redor da mesa, somado ao enfoque de ser uma nobre arte.

Sentar à mesma mesa de refeições é para um libanês um atestado de ligação fraterna, e ele não compartilha da mesa com quem não tenha esta ligação. Na religião católica, nascida no Oriente Médio e que professo, o alimento sempre teve uma participação importante nas escrituras e faz até parte de orações (“o pão nosso de cada dia”). Mais exemplos disto são   o forte significado da Última Ceia junto aos fiéis, o primeiro milagre de Cristo (transformação de água em vinho), que foi no Líbano, e o  da multiplicação dos pães e peixes. 


A velha matriarca comandando a cozinha, colocando ali a sabedoria acumulada por muitos séculos, é a rainha da reunião.  A seguir indico alguns aspectos básicos da cultura libanesa, mas ressalvo que nem todos ainda são praticados, pois houve uma modernização e globalização em diversos hábitos e valores do comportamento libanês.

A imensa variedade de pratos e sabores, dispostos à mesa em pequenas travessas sobrepostas em duas a três unidades para conseguir espaço para tudo; a insistência de todo libanês para que o outro coma, e coma, e coma. A tragédia que representa para a cozinheira, sempre dizendo que “ninguém comeu nada” ou, “não gostaram da minha comida”, etc.., por mais que os comensais tenham ali ficado várias horas apreciando os maravilhosos sabores da que considero a melhor comida do mundo (perdoem-me franceses e chineses, que seguem numa guerra para decidir qual a melhor, também do mundo!).  Constitui uma grande descortesia recusar algum alimento.

É muito comum que qualquer participante, ao ver seu prato vazio, sirva alguns alimentos mesmo sem qualquer pedido ou sinal de sua parte.  Ao terminar, convém deixar sobrar um pouco no prato, caso contrário estará transmitindo a ideia de que a refeição servida teria sido insuficiente. Certa vez um libanês me disse que a refeição corriqueira é composta de 25 pratos, e o banquete de 75. Há alguns meses um amigo fez minha inscrição em um grupo de internet, “Libaneses do RS e Mercosul” e que já possui um número elevado de participantes.


Diariamente são postadas mais de 100 fotos e mensagens, sobre uma grande variedade de assuntos. Mas o tema predominante é COMIDA LIBANESA. Já foi criado um almoço semanal em um restaurante libanês em Porto Alegre.
Como resultado desta fusão em minhas origens, tenho lembrança de alguns momentos marcantes ou curiosos relacionados à gastronomia em minha vida, e que passo a expor, de forma aleatória e em absoluta desordem cronológica ou de critério de precedência.

-Luiz Fernando Veríssimo: além do gênio literário, é reconhecido como conhecedor e apreciador da boa gastronomia, e sobre o assunto lançou um livro de crônicas. Lendo-o, fiz coro com seu desejo de processar a Medicina, devido aos muitos anos de prazeres roubados, e eu faria parceria com ele neste processo, cujo motivo é: OVO FRITO.
Durante muitos anos foi execrado, acusado de provocar os maiores malefícios à saúde; então, a Medicina mudou de ideia e retirou o ovo frito do index dos proibidos. E eu, assim como o Veríssimo, que por anos e anos perdemos os prazeres de um ovo frito desmanchando sobre um fumegante arroz? Quem irá nos compensar por esta perda de prazer? Medicina, aguarde nossa aguerrida batalha judicial!


-Mezzee: até vir morar em São Paulo, em 1958, aos 15 anos, pouco frequentei restaurantes. Em Rio Grande comíamos muito pratos árabes, mas sempre em casa, casas de amigos, festas, ou no tradicional banquete organizado todos os anos em novembro pelo Félix Saad, o grande apresentador da “Hora Libanesa” na rádio Minuano (“um programa de coração a coração: do coração libanês ao coração brasileiro”), para as festas da Independência do Líbano.

Por isto ficou marcada minha primeira vez em um restaurante libanês. Férias de julho de 1957, passei o mês em São Paulo, e o Adib Salomão levou-me a conhecer o Almanara da rua Basílio da Gama,  um dos poucos (ou, talvez, o único) de culinária árabe fora da  região da 25 de março, pois ainda não havia se difundido o conhecimento e o gosto na população como é hoje, e que começou  poucos anos depois com a Casa Kibe e a Kibelândia, no centro (Avenidas São João e Ipiranga) .

Foi uma experiência deslumbrante! Servindo no sistema “refeição completa”, era um desfile riquíssimo de variedades culinárias, com apresentação de extremo bom gosto, que somada à excelente qualidade e à beleza da Arquitetura e da decoração do local, típicas da época, tornaram tudo inesquecível.  Veja que lá se vão mais de 60 anos. Hoje o Almanara é uma rede de vários restaurantes, mas o da Basílio da Gama é o único com o sistema rodízio no serviço, e o local preserva toda a beleza original.

-Omelete gaúcho: em certa época, décadas 1990 e 2000, eu viajava mensalmente a Rio Grande, para administrar a loja que ainda tínhamos e face às condições de saúde e depois do falecimento de meus irmãos que dirigiam os negócios. Cheguei a ser “figurinha” conhecida nas empresas de aviação, devido ao voo, São Paulo – Porto Alegre. E, para obter boas tarifas e otimizar o aproveitamento do tempo, usei muitos voos da madrugada, pois ainda tinha o trecho rodoviário, 320 km, até Rio Grande, para o qual eu mantinha uma Santana Quantum numa garagem próxima ao Aeroporto em Porto Alegre. Este carro servia também para meus deslocamentos em Rio Grande, pois eu ficava em nossa casa na praia do Cassino, e os negócios eram na cidade, a 25 km, além de ter sido útil para parentes e amigos que viajavam para o sul e o usaram muito.


Em uma viagem fui tomar o café da manhã no Cuca´s, a menos de uma hora de Porto Alegre. Marco famoso para todos que fazem este percurso, o Cuca´s destaca-se por somar simplicidade e baixo preço a uma boa qualidade de alimentação e, um ambiente e atendimento   agradável e receptivo. Foi lá que pedi uma omelete “só de queijo”. Veio uma fatia de queijo quente, derretido, no meio do prato. Só! O Cuca´s inventou a omelete sem ovo! Tenho curiosidade em saber o que diriam a respeito o Anquier e o Jackin.

E em São Paulo? Calma! Eu chego lá.

Essas e demais lembranças ainda serão compartilhadas na próxima postagem. São pratos e lugares inesquecíveis que os mantenho muito vivos nas deliciosas memórias gastronômicas.

Continuação na Parte II. Até mais...