Não falo o árabe tão bem quanto deveria e gostaria. Como
filho de libaneses, em minha distante memória auditiva tem muito do árabe
falado em casa. Entendo mais do que falo. Mas, todos esses anos de convivência
com patrícios ao menos fizeram-me criar alguns conceitos sobre a língua. Acho-a
bonita, forte, altamente expressiva, além de ser um poderoso elemento de
comunicação que nos diz da forma de ser do libanês.
São praticadas duas versões do idioma árabe: uma popular e
uma erudita. Aqueles que não
compreendem o árabe costumam afirmar, sobre o popular, que nos diálogos parece
sempre que estão brigando; isto é compreensível, faz parte da força que o
libanês coloca no linguajar. O erudito soa extremamente poético e musical,
suave, agradável aos sentidos, bonito de ser ouvido.
O que pretendo neste texto é expor duas características que
considero marcantes: a língua árabe é extremamente rica e extremamente
pobre. É riquíssima em assuntos que
envolvam emoções e sentimentos; pobre para questões técnicas, tecnológicas,
científicas, etc...
Passo alguns exemplos de fatos que vivenciei e que, creio,
podem confirmar esta opinião.
Mas antes de prosseguir, quero deixar dois
conselhos ao leitor.
Primeiro: não seja xingado em árabe; se for inevitável,
evite ao menos querer saber os
significados dos impropérios que lhe foram dirigidos. Ouvidos e corações
sensíveis iriam sofrer.
Segundo: procure ser acalentado por palavras carinhosas em
árabe; são de um lirismo, de uma entrega, de uma expressividade que não imagino
existirem em qualquer outro idioma.
Entretanto, existem vários casos em que a simples tradução
literal de uma expressão não transmite a força do sentimento que a acompanha; é
necessário um conhecimento e vivência da cultura libanesa para entender seu
alcance. A título de exemplo, lembro-me de uma expressão – MÁ FIH METLE – cuja
tradução literal diz muito pouco, ”não tem igual”. Mas quem venha a ser brindado com esta
expressão por um libanês pode sentir-se um semideus, porque é de uma força e expressividade
imensas; um libanês não diz isto para qualquer mortal comum!
Alguns casos:
-Jêdu, meu avô querido, era extremamente sentimental e
amoroso com os parentes, além de ter sido um emérito “mulherengo” até seus
cerca de 80 anos, quando uma cirurgia de próstata reduziu seu desempenho
sexual. Aos 90, ainda viajava sozinho para visitar parentes em diversas cidades
nos estados SP, RJ e MG. Uma ocasião, sentado na sala de nossa casa na Vila
Mariana, puxou sua recheada carteira de endereços, e foi folhando
aleatoriamente; para cada nome que via, desfilava um rosário de palavras de
carinho e amor. Até aparecer o nome do médico que, 10 anos antes, havia “cometido”
a cirurgia. Começou com “filo da buta, estragou eu”, e, em árabe e português,
veio outro rosário, este de impropérios e xingamentos; que não foram poucos nem
leves.
-Encontrei em São Paulo um primo que não via há muito tempo,
e que me deu notícias de diversos membros da família. Quando perguntei pela
Alissar, uma sobrinha, respondeu: “Brimo, Alissar tá no colégio que estuda brá
ser aquele daktur que dá conselho bras bessoa”. Consegui “traduzir”: está
fazendo Faculdade de Psicologia onde, soube depois, foi aluna de minha cunhada,
Maria Tereza, irmã da Olga.
Certa vez eu estava no Líbano, retornando de uma viagem ao
Japão a serviço do Metrô de São Paulo. Fui com um primo a uma igreja secular,
(ou milenar?) nas lindas montanhas libanesas. Lá conheci um Padre, bastante
idoso; tanto ele e suas longas barbas como a Igreja pareciam não ter idade, como se fossem eternos e parte daquela
paisagem magnífica (esta imagem me veio de uma entrevista de Borges, o Jorge
Luis, que numa declaração de amor a
Buenos Aires disse que não consegue imaginar que sua cidade um dia tenha sido construída,
para ele é como o céu e os ventos, é eterna, sempre existiu).
Lá também conheci outro Padre, jovem, libanês morando no
Canadá, muito atualizado, bem informado. Conversamos bastante, e ele me
apresentou ao “idoso” como um libanês nascido no Brasil (é assim que sou
apresentado lá, um libanês nascido no Brasil). Falando em árabe, mas eu entendi
tudo, explicou que fui ao Japão onde existe um trem que passa embaixo do chão,
e eu fui ver como eles fazem para fazer igual no Brasil. Nada de estudo, visita
técnica, sistema metroviário, simplesmente “ver como fazem um trem embaixo do
chão”. Não esqueço jamais a expressão de absoluto assombro, indagando se
“existe isso na vida, um trem embaixo do chão?”
Depois destes casos o leitor concorda comigo sobre a
riquíssima língua pobre?
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Postado por Jasel Neme