13/03/2018

Aula inaugural


               

Prezados!



Para a minha faculdade e a época em que cursei, existiam fatos que, acredito, não mais ocorram atualmente. Escola Politécnica da USP (“Poli”), década de 1960. A figura do “Catedrático” era algo  quase majestático; a história, cultura e tradições imperavam; e a famosa “aula inaugural” de diversas matérias (“cadeiras”) era um ritual, quase um show, marcante e em vários casos inesquecível. 

Muitos “chavões” para favorecer a didática eram utilizados, e ficaram marcados na memória de todos. Em muitas, era o dia de conhecermos o Catedrático que às vezes era alguma figura pública famosa até   fora dos ambientes universitários; a título de exemplo, cito o Prof. Lucas Nogueira Garcez, ex-Governador do Estado de São Paulo, e o ex-Prefeito de São Paulo, José Carlos de Figueiredo Ferraz.

Relato a seguir alguns episódios ocorridos em aula inaugural.

-“Camargão” (José Octávio Monteiro de Camargo), figura quase lendária na USP, misturava a “sua” matemática – Cálculo Integral e Diferencial – com filosofia. Entre muito do que devemos a ele, inclui-se o respeito que o nome “Poli” desfruta nos meios técnicos, e o estabelecimento extensivo a todo o Brasil de métodos de ensino da matéria. 

De sua aula inaugural ficou-nos uma historinha contada por ele: “em visita às obras de uma catedral, vi três pedreiros executando exatamente o mesmo serviço. Perguntei ao primeiro, o que Você está fazendo? Respondeu que “estou assentando tijolos”; ao segundo, à mesma pergunta, respondeu “estou levantando uma parede”; ao terceiro, respondeu “estou construindo uma catedral”. 

Os futuros engenheiros que Vocês serão devem ter esta visão, completa, abrangente, a do terceiro pedreiro, sabendo cada passo e cada tarefa a serem cumpridos e tendo o controle e o conhecimento de todo o conjunto.” História marcante, face o entusiasmo e até deslumbramento dos primeiro-anistas politécnicos.

-Telêmaco Hyppolito de Macedo van Langendonck, gaúcho de Bagé, outra figura lendária, gênio em sua matéria, Resistência dos Materiais. Renomado autor de tratados sobre o assunto, consta que, em visita de estudos à Alemanha, na Universidade de Munich a bibliotecária, sem saber de quem se tratava, ao ser solicitada para fornecer o livro de maior importância sobre a matéria trouxe o de autoria dele. Também consta que, participando de um grupo de consultores para uma análise  de um grave acidente estrutural então ocorrido, ninguem deu seu parecer até ouvir o que disse o Prof. Telêmaco, para então confirmarem sua absoluta concordância com a opinião do mesmo. 

Suas primeiras palavras na aula inaugural: “depois do cão, o concreto é o melhor amigo do homem”. Alguns anos depois, um exemplo claro de amizade que pode virar amor: meu colega de turma e grande amigo Botelho (Manoel Henrique Campos Botelho) lançou um livro, sucesso nacional entre os profissionais, “Concreto Armado Eu Te Amo”, já em avançado número de edições.

-Lucas Nogueira Garcez, grande mestre da Engenharia Hidráulica. A ele devemos respeitados compêndios, utilizados nas universidades em todo o Brasil. Como Governador, deu fantástico desenvolvimento ao plano estadual de eletrificação com as usinas hidroelétricas. Parece que não concordava muito com o Prof. Telêmaco quanto a nossos “melhores amigos”; iniciou sua aula inaugural dizendo: “a água é o maior amigo e o maior inimigo do homem! É nossa amiga como elemento essencial à vida e à higiene, quando aplaca nossa sede, quando faz parte das mais belas paisagens, quando nos dá prazer ao desfrutá-la em navegação, pesca, banhos marítimos, quando gera o conforto e a riqueza por uma usina hidroelétrica; é nossa inimiga quando, poluída, traz doenças e desconforto, quando descontrolada gera inundações, destruições e mortes. Cabe a nós, Engenheiros Hidráulicos, tornar a água sempre nossa amiga.”

-Rui Leme - Prof. Rui Aguiar da Silva Leme, catedrático de Organização Racional do Trabalho. Grande e respeitado nome em sua área de atuação, vários livros publicados. Defendia a criação de um Banco Central, então inexistente e cujas funções eram desempenhadas pelo Banco do Brasil. Suas idéias foram aceitas pelo regime militar, o Banco foi criado, e Rui Leme foi seu primeiro Presidente. 
À época do “boom” industrial decorrente do Governo JK, foi consultor de diversas empresas  estrangeiras ao se instalarem no Brasil. Dizia-nos, então: “para qualquer organização produtiva é essencial analisar, entre outros fatores, quais as características da mão de obra com a qual iremos contar, pois as diferenças culturais são imensamente diferentes conforme sua origem. Por exemplo, vocês NUNCA conseguirão explicar a um alemão o que é o jeitinho.” 
E fazia questão de frizar: não é que não utilizem o jeitinho, simplesmente é impossível que aprendam 

QUE É ISTO!

Estradas: o professor na aula inaugural ensinou a grande lição, que foi sempre lembrada por todos: “para o  projeto e construção de uma boa estrada existem três segredos: drenagem, ........drenagem,............, e, ....................drenagem.”

-Milton Mautoni, professor de cálculo de concreto armado, disse na primeira aula: “entendo perfeitamente vocês, jovens, orgulhosos e entusiasmados por estarem numa faculdade famosa e respeitada. Mas a vivência da Engenharia é bem diferente, certas visões são bem diferentes da de vocês. Por exemplo, o velho mestre de obras irá mostrar com orgulho ao seu pequeno garoto a obra que o papai comanda, e dirá: filho, tá vendo aquele que está cortando e dobrando ferro? Chama-se ferreiro. Aquele que serra madeira e faz uns caixotes, chama-se carpinteiro. Aquele que mistura cimento com areia, pedra e água, chama-se pedreiro. E aquele ali, que não faz nada, chama-se Engenheiro.”

-Paulo de Menezes Mendes da Rocha, catedrático de “Navegação Interior e Portos Marítimos”, na magna aula inaugural, com a presença de dois professores assistentes, Almeida e Célio, discorreu com entusiasmo sobre o assunto. Falou dos portos, rios, canais, navios de grande calado e de pequeno calado, e muito mais. Ao final da aula, os dois assistentes já haviam “ganho” apelidos, graças ao espírito criativo e gozador dos estudantes. Almeida, alto, e Célio, baixinho e mirrado, permaneceram sem falar todo o tempo, acompanhando a dissertação do mestre e passaram a ser, durante o curso, o “grande calado” e o “pequeno calado”.

Passados mais de 50 anos dos fatos narrados, todos os que participaram não esquecem. Aconteceram numa fase de nossas vidas em que, jovens, estávamos abertos para receber uma grande quantidade de informações e de agregar um grande volume de novos conhecimentos. E, com certeza, o time de mestres da Poli, altamente competente, contribuiu muito para este aprendizado.

Presto a todos eles minha homenagem e minha gratidão.

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Um comentário:

  1. Toda aula inaugural é única e marcante.
    Muito bom.

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