
Para a minha faculdade e a época em que cursei, existiam fatos que, acredito, não
mais ocorram atualmente. Escola Politécnica da USP (“Poli”), década de 1960. A
figura do “Catedrático” era algo quase
majestático; a história, cultura e tradições imperavam; e a famosa “aula
inaugural” de diversas matérias (“cadeiras”) era um ritual, quase um show,
marcante e em vários casos inesquecível.
Muitos “chavões” para favorecer a
didática eram utilizados, e ficaram marcados na memória de todos. Em muitas,
era o dia de conhecermos o Catedrático que às vezes era alguma figura pública
famosa até fora dos ambientes
universitários; a título de exemplo, cito o Prof. Lucas Nogueira Garcez,
ex-Governador do Estado de São Paulo, e o ex-Prefeito de São Paulo, José Carlos
de Figueiredo Ferraz.
Relato a seguir alguns episódios ocorridos em aula inaugural.
-“Camargão” (José Octávio Monteiro de Camargo), figura quase
lendária na USP, misturava a “sua” matemática – Cálculo Integral e Diferencial
– com filosofia. Entre muito do que devemos a ele, inclui-se o respeito que o
nome “Poli” desfruta nos meios técnicos, e o estabelecimento extensivo a todo o
Brasil de métodos de ensino da matéria.
De sua aula inaugural ficou-nos uma historinha
contada por ele: “em visita às obras de uma catedral, vi três pedreiros
executando exatamente o mesmo serviço. Perguntei ao primeiro, o que Você está
fazendo? Respondeu que “estou assentando tijolos”; ao segundo, à mesma
pergunta, respondeu “estou levantando uma parede”; ao terceiro, respondeu
“estou construindo uma catedral”.
Os futuros engenheiros que Vocês serão devem
ter esta visão, completa, abrangente, a do terceiro pedreiro, sabendo cada
passo e cada tarefa a serem cumpridos e tendo o controle e o conhecimento de
todo o conjunto.” História marcante, face o entusiasmo e até deslumbramento dos
primeiro-anistas politécnicos.
-Telêmaco Hyppolito de Macedo van Langendonck, gaúcho de Bagé,
outra figura lendária, gênio em sua matéria, Resistência dos Materiais.
Renomado autor de tratados sobre o assunto, consta que, em visita de estudos à
Alemanha, na Universidade de Munich a bibliotecária, sem saber de quem se
tratava, ao ser solicitada para fornecer o livro de maior importância sobre a
matéria trouxe o de autoria dele. Também consta que, participando de um grupo
de consultores para uma análise de um
grave acidente estrutural então ocorrido, ninguem deu seu parecer até ouvir o
que disse o Prof. Telêmaco, para então confirmarem sua absoluta concordância
com a opinião do mesmo.
Suas primeiras palavras na aula inaugural: “depois do
cão, o concreto é o melhor amigo do homem”. Alguns anos depois, um exemplo
claro de amizade que pode virar amor: meu colega de turma e grande amigo
Botelho (Manoel Henrique Campos Botelho) lançou um livro, sucesso nacional
entre os profissionais, “Concreto Armado Eu Te Amo”, já em avançado número de
edições.
-Lucas Nogueira Garcez, grande mestre da Engenharia
Hidráulica. A ele devemos respeitados compêndios, utilizados nas universidades
em todo o Brasil. Como Governador, deu fantástico desenvolvimento ao plano
estadual de eletrificação com as usinas hidroelétricas. Parece que não
concordava muito com o Prof. Telêmaco quanto a nossos “melhores amigos”;
iniciou sua aula inaugural dizendo: “a água é o maior amigo e o maior inimigo
do homem! É nossa amiga como elemento essencial à vida e à higiene, quando
aplaca nossa sede, quando faz parte das mais belas paisagens, quando nos dá
prazer ao desfrutá-la em navegação, pesca, banhos marítimos, quando gera o
conforto e a riqueza por uma usina hidroelétrica; é nossa inimiga quando,
poluída, traz doenças e desconforto, quando descontrolada gera inundações,
destruições e mortes. Cabe a nós, Engenheiros Hidráulicos, tornar a água sempre
nossa amiga.”
-Rui Leme - Prof. Rui Aguiar da Silva Leme, catedrático de
Organização Racional do Trabalho. Grande e respeitado nome em sua área de
atuação, vários livros publicados. Defendia a criação de um Banco Central,
então inexistente e cujas funções eram desempenhadas pelo Banco do Brasil. Suas
idéias foram aceitas pelo regime militar, o Banco foi criado, e Rui Leme foi
seu primeiro Presidente.
À época do “boom” industrial decorrente do Governo JK,
foi consultor de diversas empresas
estrangeiras ao se instalarem no Brasil. Dizia-nos, então: “para
qualquer organização produtiva é essencial analisar, entre outros fatores,
quais as características da mão de obra com a qual iremos contar, pois as
diferenças culturais são imensamente diferentes conforme sua origem. Por
exemplo, vocês NUNCA conseguirão explicar a um alemão o que é o jeitinho.”
E
fazia questão de frizar: não é que não utilizem o jeitinho, simplesmente é
impossível que aprendam
O QUE É ISTO!
Estradas: o professor na aula inaugural ensinou a grande
lição, que foi sempre lembrada por todos: “para o projeto e construção de uma boa estrada
existem três segredos: drenagem, ........drenagem,............, e, ....................drenagem.”
-Milton Mautoni, professor de cálculo de concreto armado,
disse na primeira aula: “entendo perfeitamente vocês, jovens, orgulhosos e
entusiasmados por estarem numa faculdade famosa e respeitada. Mas a vivência da
Engenharia é bem diferente, certas visões são bem diferentes da de vocês. Por
exemplo, o velho mestre de obras irá mostrar com orgulho ao seu pequeno garoto
a obra que o papai comanda, e dirá: filho, tá vendo aquele que está cortando e
dobrando ferro? Chama-se ferreiro. Aquele que serra madeira e faz uns caixotes,
chama-se carpinteiro. Aquele que mistura cimento com areia, pedra e água,
chama-se pedreiro. E aquele ali, que não faz nada, chama-se Engenheiro.”
-Paulo de Menezes Mendes da Rocha, catedrático de “Navegação
Interior e Portos Marítimos”, na magna aula inaugural, com a presença de dois
professores assistentes, Almeida e Célio, discorreu com entusiasmo sobre o
assunto. Falou dos portos, rios, canais, navios de grande calado e de pequeno
calado, e muito mais. Ao final da aula, os dois assistentes já haviam “ganho”
apelidos, graças ao espírito criativo e gozador dos estudantes. Almeida, alto,
e Célio, baixinho e mirrado, permaneceram sem falar todo o tempo, acompanhando
a dissertação do mestre e passaram a ser, durante o curso, o “grande calado” e
o “pequeno calado”.
Passados mais de 50 anos dos fatos narrados, todos os que
participaram não esquecem. Aconteceram numa fase de nossas vidas em que,
jovens, estávamos abertos para receber uma grande quantidade de informações e
de agregar um grande volume de novos conhecimentos. E, com certeza, o time de
mestres da Poli, altamente competente, contribuiu muito para este aprendizado.
Presto a todos eles minha homenagem e minha gratidão.
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Toda aula inaugural é única e marcante.
ResponderExcluirMuito bom.